A música das manhãs
Clotilde Tavares | 14 de outubro de 2009Acordei com a obrigação de enviar a minha coluna para o jornal, mas sem saber direito o que ia escrever. Em busca de inspiração, liguei a TV e o canal que estava sintonizado era um daqueles que passam filmes antigos. Em preto e branco, um musical daqueles em que os homens usam paletós com ombreiras largas e os vestidos das mulheres têm saias rodadas; os personagens estão conversando e de repente começam a cantar como se fosse a coisa mais natural do mundo – e é, nesses filmes.Uma das canções era “A música das manhãs”, onde o personagem, entregando leite de porta em porta, canta os sons matinais da cidade.
O caso é que acordamos sempre atrasados, correndo para o trabalho, tendo de deixar antes as crianças na escola, além de outras obrigações e terminamos por ficar surdo ao mundo que, junto conosco, desperta à nossa volta. Acredite, meu caro leitor, que é possível distinguir entre o ruído dos carros nas avenidas apinhadas, o cantar dos passarinhos e o rumor do vento nas folhas das árvores. Para mim, que não saio de casa de manhã, a música da manhã tem os bem-te-vis cantando e o vento na palmeira em frente à minha janela; como uma grande avenida está a menos de trinta metros, carros e ônibus se juntam à sinfonia, encarregados dos tons graves. Uma moto acelera na esquina, e a campainha do colégio no outro quarteirão chega aos meus ouvidos.
Dentro do prédio, os pedreiros já começaram o trabalho no apartamento do final do corredor; ao longe, ouço o ruído surdo da porta do elevador quando alguém a deixa bater, e o portão eletrônico de saída dos carros toca sua rumba rascante, rolando sobre o trilho. Um flautim agudíssmo sobrepõe-se a tudo: é o apito da chaleira avisando que a água está pronta para ser despejada sobre o pó do café, já pronto sobre a garrafa, e o tlim-tlim do forno de microondas me diz que o pão está quentinho e o queijo deliciosamente derretido.
Uma voz forte de homem predomina agora: é o vigia do prédio em frente, falando com alguém; um cão late; e o ventilador, já velho, com defeito e ligado a esta hora, marca o tempo com seu estacato seco e duro, pois mesmo cedo o calor já é grande.
Esta é a música das manhãs, e este concerto de sons me traz a certeza de vida. Ouço, logo existo, e existo feliz nesse mundo variado, bom de viver, porque é o único mundo que conheço. Para completar, o recado de mais uma canção do filme, ingênuo e tolo, mas que me deu o assunto de hoje: “Entregue-se a esse gigante gentil chamado Amor… “